As ideias tecnocráticas emergem no século XX para disputarem as funções políticas tradicionalmente reservadas às ideologias e inscrevem-se numa lógica cientificista que o positivismo de oitocentos desenvolveu radicalmente no seio da sociedade francesa. Exaltando as prestações das ciências da natureza e procurando afeiçoar os seus métodos à análise da história, o positivismo reivindicou o monopólio do conhecimento em todas as áreas e julgou-se com legitimidade intelectual para definir o «ser» e o «dever ser» sociais.
Na escatologia comteana o positivismo contém a sugestão de um «governo de sociólogos» destinado a liderar até ao fim dos tempos e há quem vislumbre nesta fórmula ecos do «governo de sábios» platónico que também procurou colocar o «verdadeiro» conhecimento - a teoria das formas - ao leme da sociedade. De facto, definir e justificar um escol intelectual apto a desenvolver políticas desideologizadas foi um problema central na filosofia positiva e a ideia de um comando político monopolizado por elites científicas foi a solução lógica.
O positivismo oitocentista não se limitou a conhecer os factos sociais interrogando a história. Foi mais longe, e assumiu-se como ciência normativa: partiu do «ser» para o «dever ser». As normas colhidas do entendimento que deu aos factos serviram para determinar instituições, sentimentos, objectivos sociais, atitudes morais e modelos de governação política conformes à sociedade industrial.
Insinuando-se em fragmentos dispersos nas controvérsias epistemológicas e nos discursos sobre as problemáticas sociais, as ideias da filosofia positiva adquiriram explicitude e sistematicidade na obra de Comte sob a forma de um determinismo idealista que interpretou a evolução como uma necessidade e viu na época positivista o «fim da história».
Segundo o comteanismo, o espírito e a prática do positivismo ter-se-iam entrincheirado gradualmente nos diferentes campos do conhecimento sem que tal determinasse a subversão da hegemonia sucessiva dos modos teológico e metafísico de interpretar-modelar o mundo. Foi preciso que o método positivo estivesse habilitado a decifrar a natureza do social, a determinar as causas da sua evolução e a definir as fases sequenciais da maturação do espírito para que os fenómenos sociais ficassem na alçada da ciência como já ocorrera nas matérias físicas, biológicas e psicológicas.
Apesar de ter sido Comte o autor da teoria sistemática que fundamenta o positivismo não é ele o pioneiro do pensamento positista nem sequer o predecessor mais original da idiossincrasia tecnocrática cuja criação é imputada a Saint Simon que concebeu a ideia de uma pilotagem social reduzida à gestão técnica e a resumiu em figuras de estilo extremamente sugestivas da substância política da sociedade tecnicizada e da estrutura social correspondente: a substituição do «governo dos homens» pela «administração das coisas» foi a fórmula célebre que usou para afirmar o primado da técnica e da economia sobre a política nas sociedades industriais.
A leitura radical que o conde fazia do impacto da tecnociência na definição do tecido social é por vezes trazida numa linguagem condensada, impressionista e criativa que hoje legenda as incursões teóricas na tecnocracia. Quem, no circulo das ciências humanas, não leu e releu a parábola obrigatória contra a permanência das componentes do Ancien Regime na estrutura da sociedade francesa pós-revolucionária»? Parábola escrita com cruel simplicidade para afirmar a disfuncionalidade parasitária da aristocracia e do clero na sociedade industrial onde o primado da produção e o ocaso dos saberes reclamariam a passagem do poder para os «industriais», entendidos como a totalidade dos agentes da economia.
Para o mestre de Comte os industriais constituiam a classe decisiva para organizar, gerir e trabalhar nas sociedades centradas na produção de mercadorias e dominadas pelo valor teórico-prático da ciência, alargada à leitura do social.
Foi a ideia sainsimoniana da despolitização cientificista do mundo industrial que Comte absorveu, redefiniu e monumentalizou num quadro intelectual onde o empirismo e o historicismo espiritualista de Condorcet já tinha contribuído para definir as bases epistemológicas e filosóficas das concepções positivistas. Nestas condições, o comteanismo construiu uma narrativa histórica de traça enciclopédica baseada na evolução fásica do pensamento humano até à realização integral do espírito positivo e usou a «Lei dos Três Estados» e a «Classificação das Ciências» para combinar o percurso geral e especializado da Razão que a sua razão fechou na sociologia e os seus sentimentos prolongaram até à moral.
Na lógica do comteanismo, a sociologia desferia o último golpe na metafísica: desalojava-a do reduto social onde ainda mantinha competências para produzir ensinamentos de facto e definir normas de acção. A sociologia estaria em condições de remover as falsificações metafísicas sobre o «ser» e o «dever ser» sociais e de as trocar por proposições fundadas na aplicação da metodologia científica que serviriam de base à governação positivista após o período político dominado pelas ideias metafísicas e pela actividade legislativa.
A hipertrofia do campo de aplicação da ciència e a hipervalorização dos seus conteúdos significaram a menorização da teologia e da metafísica acusadas de representarem modos obsoletos de interpretar o real. A crítica positivista da metafísica desmultiplica-se no ataque às falsificações resultantes do seu subjectivismo especulativo e na oposição à sua megalónoma pretensão de fundir a verdade com a substância das coisas. Foi em conformidade com a noção da lógica evolutiva da inteligência que a sociologia nasceu no seio da filosofia positiva para apear de vez a ambição de aceder à «verdade» ontológica que procura atingir a essência do «ser» e mostrar que o conhecimento possível, genuíno e necessário se queda na superfície das coisas. O único saber viável reduzir-se-ia, no comteanismo, à apreensão dos fenómenos que emergem regularmente dentro de cadeias específicas de antecedentes-consequentes tal como haviam mostrado os empiristas encabeçados por David Hume.
Admitindo que todas as disciplinas passavam pela sua fase teológica, metafísica e positiva, o «pai da sociologia» entendeu que a esfera dos fenómenos da natureza e da mente já se havia tornado positiva faltando cumprir a ciência no discurso sobre o social. Foi esta a tarefa que o comteanismo realizou quando inventou a sociologia e, nesse instante, instaurou as condições intelectuais de passagem da fase metafísica à fase terminal da história humana: o estado positivo. Nas reflexões do positivismo, a sociologia era o elo em falta na cadeia científica e gerava dois efeitos indissociáveis:
1) A cobertura científica integral dos domínios possíveis do saber.
2) A conversão progressiva da humanidade ao monolitismo, ao laicismo e ao pacífismo sob os auspícios de princípios científicos necessariamente universias, dessobrenaturalizantes e eficazes.
Para trás, ficavam a busca do transcendente e os devaneios ontológicos reflectidos nas teologias e nas metafísicas que correspondiam a modelos monárquicos e parlamentares prestes a serem enterrados pelas projecções sociais totais da mentalidade positivista.
Expressa num governo de sábios, numa economia de mercado, numa igreja sem deuses, numa visão ecuménica das solidariedades e numa cultura de saberes modestos, rigorosos e eficazes, a utopia comteana antecipa e modela radicalmente a idiossincrasia e os projectos políticos da tecnocracia: o modelo ideal-típico da cidadela positivista é o sonho tecnocrático.
Contra as ficções produzidas pela fé e pela especulação abstracta, o positivismo ergueu o facho da verdade científica. Contra as estruturas sociais compatíveis com a teologia e a metafísica, o positivismo redesenhou a sociedade em bases científicas. Contra os figurinos políticos de fundamento hereditário ou de raiz metafísica, o positivismo proclamou o monolitismo dos saberes sociais fundados em metodologias com provas dadas na esfera da ciência.
Na obra comteana, as teses positivistas formulam-se de modo explícito, unitário e sistemático para fundamentar a transformação do conhecimento científico em poder político adequado às singularidades das sociedades industriais onde o governo positivista encerraria o ciclo das transformações fásicas da história. No estado positivo teríamos uma humanidade monolítica comandada por sábios avessos à dogmática da fé, à retórica metafísica e aos modelos políticos plurais.
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