quarta-feira, 11 de julho de 2007

O Conformismo

O conformismo é o produto final de um processo de cedências no decurso do qual as opiniões pessoais e as capacidades criadoras abdicaram de se exprimir ou, mais gravemente, começaram a murchar na fonte. A cidade empalidece e fica mais desguarnecida.

Neste ponto, o homem dilui-se no não-ser e resta-lhe a lembrança de um sonho de si próprio que se apaga na impotência cívica e na solidão de todos os desencontros. Tecnicamente falando, a criatura aliena-se: perdendo-se de si, perde-se do mundo e transforma-se numa plasticina formatável pelos poderes sem compaixão.

A democracia identificava-se com a irreverência cívica e assumia a gestão constitucionalizada dos conflitos como a substância do exercício de uma liberdade que tinha como limites a sua própria defesa. A liberdade era tudo, porque a razão não vive sem ela e o mundo que a recusasse era inimigo da inteligência condenando-se ao obscurantismo que dá alimento à servidão.

O Homem da cidadela democrática seria livre de explodir na palavra, de se apresentar nas ideias e de as fazer intervir na gestão da vida colectiva: de que serviria a liberdade se o seu testemunho agonizasse no vazio? De que serviria a liberdade se o seu testemunho ocorresse nas margens? De que serviria a liberdade se o seu testemunho falecesse no silêncio? De que serviria a liberdade se o seu testemunho fosse hipocritamente punido? De que serviria a liberdade se não fosse liberdade?

A liberdade era a safira do futuro, a amante dos heróis, a inspiração dos poetas, a central nuclear das Luzes e, como tantos outros, Voltaire aceitava morrer pela palavra solta ainda que dela viessem maus ventos para o seu destino.

Liberta da falsidade arrogante dos dogmas, redimida da ignorância primária das superstições e resgatada das algemas da censura a palavra retirava a fantasia da clausura, dava oxigénio à inteligência, couraçava a confiança e punha os sentimentos em circulação na festa dos valores e na fidelidade aos factos.

Cada um escolheria o seu bom, o seu belo e o seu certo no versátil baú da vida. Haveria um filão de leite e de mel amigo de todas as sensibilidades e de todos os gostos que recusassem a violência sobre o outro: a violência física, a violência psicológica, a violência económica, a violência cultural e a violência do esquecimento.

Ciência à parte, cada um era uma subjectividade pronta a cumpliciar-se selectivamente com outras subjectividades em particulares visões do mundo e a democracia garantia que cada palavra individual era igual a cada palavra individual na formação das maiorias alternantes no leme do poder.
Sob o manto protector e exaltante das liberdades formais, sob a força telúrica e racional do mercado e sob a intervenção equilibrante e humanizadora do Estado as luzes do progresso misturar-se-iam com o calor dos afectos num mundo razoavelmente bondoso e numa atmosfera aceitavelmente meritocrática.

Este era o menú de luz da «liberdade, da igualdade e da fraternidade» com umas pitadas mais ou menos apimentadas de companheirismo do Estado. Este era o caminho radioso do ocidente que se opunha às sombras sinistras dos «goulacs».

No comando estariam os mais aptos, nas ciências os mais inteligentes, na riqueza os mais empreendedores: mas ninguém seria excluído da cidade, ninguém deixaria de ser bem cuidado da saúde e ninguém deixaria de se sentar a uma mesa bastante!

Alguns dos abris de Abril tomaram esta carta de intenções nas suas mãos, levaram-na ao regaço onírico do socialismo, regaram-na com a loucura de cavalos à solta, deram-lhe espaços ecuménicos, fizeram dela a gazua da liberdade de povos que pensaram justos e tomaram-na como mãe na solidária caminhada pelas veredas do futuro.

Sabem onde está esta carta? Têm-na visto por aí? Conformaram-se com o seu exílio?

Eu, não!

Valter Guerreiro, 2008

sexta-feira, 6 de julho de 2007

Lembrando António Variações

As palavras soltam-se na música inconfundível para exceder um tempo. São palavras simples, doridas e provocatórias que usam harmonias muito pessoais para escoar inquietações que se atam às nossas. Despidas de violência, envolvidas numa específica respiração popular as imagens vestem-se de estéticas sonoras originais para pedir meças ao convencional sem afrouxar na qualidade. A voz que traz as cantigas sugere uma irreverência humilde e lança-se nas alturas para ganhar uma estranha beleza, fortemente identitária.

Os conflitos, as emoções, os desejos, os medos que o artista convoca são dele mas a substância de que são feitos e a inspiração que os processa transpersonalizam-nos com uma singular genialidade: perturbam, agitam, agradam e desafiam a sociedade transversalmente. É uma arte que interessa o homem comum e o erudito, é uma arte que é portuguesa sem prescindir da universalidade, é uma arte que politiza sem reivindicar um padrão ideológico. Porque é autêntica, porque é inteligente, porque descola do conhecido.

Sinal de um destino votado à glorificação póstuma, dramatização tecida pelo acaso ou mera decorrência de um traço transgressivo, o cantor foi pioneiro de uma doença trágica que o arrancou prematuramente ao nosso convívio. A morte precoce é uma conhecida condição para a construção dos mitos e, no caso do cantor, a maleita que o vitimou recobre-se de um duplo simbolismo: permanecendo um sinal dos tempos, vinca tragicamente a actualidade dos acasos e descasos da sua curta passagem pelo mundo; dando uma involuntária coerência à sua originalidade na morte e na vida, adensa mistérios e aguça a curiosidade pela sua obra.

Ícone da excentricidade, o artista deixou um legado polémico e suficientemente rico para ser explorado de vários ângulos em benefício da arte de fazer canções, da arte de as vocalizar e da arte de as encenar.

Por si só, esta herança original justificaria uma serena homenagem ao seu contributo versátil para o domínio das cantigas, mas não é tudo. Há um homem controverso, autêntico e inquietante por detrás dos sons em redemoinho e das frases esculpidas nos enlaces da vida comum com os exercícios nas margens: é uma figura humana cruzada pelo destemor da alma, pela indumentária bizarra e pela tragédia pessoal.

De traça plebeia e em estilo popular, a memória que guardo de Variações é mais um labéu acusatório da sociedade «normalizada» e depressiva que cava cada vez mais fundo no nosso quotidiano.

Foi mais ou menos isto que escrevi para definir o espírito de um musical que está em fase final de negociação. Porque as suas cantigas são gritos de alma que me tocam, porque são criaturas de uma qualidade artística singular e porque encarnam dilemas da maior actualidade com a plasticidade inclusiva de todos quantos desdenham o deserto de alma tecnocrático, resolvi aproveitar a sua memória para inaugurar este blogue.
Valter Guerreiro, 2008