A «filosofia positiva» imaginou que o processo conducente à cidade comteana se desenrolasse à escala planetária sustentado num determinismo que a «lei dos três estados» reflectia. No «fim da história» comteano, o positivismo substitui o mosaico político e a variedade social permitida pelas culturas pré-científicas.
Nos sistemas industriais de mercado os governos serão ocupados pelos peritos nos saberes positivos em coerência com uma cultura integralmente científica. Esta mundialização do positivismo coincide na essência com as aspirações tecnocráticas
Palco de modelos sociais variados em trânsito para um «fim de história» sabiocrático, a evolução do espírito conspiraria a favor da razão instrumental destinada a conter a saga humana nos limites das fronteiras impostas pela ciência. A história «contada» pela filosofia positiva parte de colectivos hegemonizados por ficções que se vão sofisticando sem saírem de quadros mentais adaptados à cultura do subjectivo, do mistério, das causas últimas, das essências e dos absolutos. O excepcional imaginado pelos espíritos imbuídos de convicções religiosas e metafísicas cederá na fase positiva ao ordinário empiricamente explicado no âmbito da cultura científica. As veleidades românticas e os arrobos passionais característicos das culturas pré-positivistas deixarão o campo da psique para nele se instalarem propósitos e afectos realistas extraídos da racionalidade positivista.
Os imaginários pessoais e colectivos educados para a irreverência e para os voos sem limites não têm lugar na cidade positivista. Ao contrário, a racionalidade comteana tem um pendor fatalista que se resolve numa atitude conservadora e pessimista como se vê nesta prosa: ”O positivismo tende poderosamente, pela sua natureza, a consolidar a ordem pública, pelo desenvolvimento de uma sábia resignação, isto é, uma disposição permanente a suportar com constância e sem nenhuma esperança de mudança, os males inevitáveis que regem todos os fenómenos naturais que se dá através do profundo sentimento dessas leis invariáveis. A filosofia positiva, que cria essa disposição, aplica-se a todos os campos, inclusive ao campo dos males políticos”. É difícil imaginar um mundo mais resignacionista!
Destinada à hegemonia positivista, a aventura do homem termina num modelo social planetário e uniforme correspondente ao carácter universal do paradigma da ciência clássica. As teses comteanas sustentam o primado da razão instrumental que corresponde à dominância da tecnociência vista como o trunfo da modernidade para cumprir o destino humano em todas as esferas, incluindo a gestão da coisa pública.
A desvalorização do mérito cognoscente e social das variantes teológicas e especulativas naturalmente produtoras da heterogeneidade sócio-cultural e a admitida vocação da ciência para ocupar a vacatura intelectual e espiritual consequente à eliminação dos modos de conhecimento pré-científicos são as razões de fundo da marcha histórica para a monocromia social da modernidade: igual e válida em toda a parte, a ciência mundializaria o regime capitalista industrial moldado em bases positivistas.
Cada forma social seria construída a partir das componentes de um padrão intelectual hegemónico gerador de estruturas e de funcionalidades adaptadas às fórmulas de pensamento características do padrão: nas sociedades formatadas segundo os princípios positivistas o poder político invocará o padrão científico.
Esboçado um princípio geral de coerência tipológica entre pensamento dominante, estrutura social e poder, o positivismo estabelece o perfil de governo necessário ao monopólio do saber científico nas sociedades industrializadas. Nesta lógica, todos os sábios contribuirão superiormente para a realização das tarefas colectivas, mas serão os sociólogos os eleitos para a acção governativa porque dispõem dos saberes necessários à definição das linhas estratégicas e à condução dos negócios públicos. Os altos dignitários do poder, elite entre as elites intelectuais, são obviamente os sociólogos: uma «intelligentzia» científica e técnica que investiga os domínios sincrónicos e diacrónicos do social. Nas outras matérias, os especialistas ditarão as suas leis no respeito pelos valores e estratégias definidas pelos sábios generalistas no âmbito da execução das políticas positivas.
A crítica positivista da metafísica encerra a lógica vertebral dos sistemas de pensamento tecnocrático e esclarece a sua natureza monolítica: a cidade comteana é uma república laica de sábios erguida sobre a razão instrumental. Hábeis no manuseamento de saberes e técnicas fundamentais à gestão do processo social, os cientistas da coisa social usarão a razão em política como os seus colegas a usam nas matérias da sua especialidade. A república comteana é um rochedo monolítico encaixado numa cultura pragmática superiormente dirigida por sábios sem oposições partidárias e parlamentares: é um «fim da história» politicamente liberto da sacralização do poder característica dos regimes monárquicos e das falsificações metafísicas dos regimes parlamentares de base eleitoral.
Eleições e parlamento fazem sentido nos ambientes sociais formatados pela subjectividade política, cívica, moral e religiosa mas perderão qualquer significado nas culturas positivistas onde os políticos-sábios construirão o «progresso na ordem» sob orientações sociológicos tão indiscutíveis quanto os princípios que orientam o engenheiro físico na produção de uma máquina. Ao governo dos sábios competiria modelar a sociedade de acordo com os cânones do positivismo no âmbito de uma mudança nas instituições precedida de uma reforma intelectual sintónica com o reconhecimento colectivo do valor insuperável da ciência como base do conhecimento, da educação e da acção.
Guiada pelo generalismo sintético dos técnicos da coisa social, baseada no trabalho de especialistas, polarizada na actividade dos industriais, alimentada por uma cultura do objectivo, o modelo comteano é um bunker sem respiradouros para outras sensibilidades intelectuais que não decorram da investigação positiva dos factos.
No tipo-ideal da cidade comteana incrustam as tecnocracias, que emergem como «positivismos mitigados» favorecidos pela perda de espaço das subjectividades ideológicas nas sociedades dominadas pela soberania da máquina. No entanto, apesar das vantagens combinadas que o tecnologismo, o consumismo e o economicismo oferecem à tecnocracia, a persistência dos discursos ideológicos no combate político e os nichos de resistência social à progressiva falência dos valores humanistas impede a filosofia tecnocrática de se exprimir completamente, obrigando-a a moderar os seus ideais nos limites da «realpolitik» e a agir dentro das formações políticas com base em discursos técnicos formalmente conexionados com os valores invocados por cada partido. Nestes pressupostos, o tecnocrata exprime-se pluralisticamente nos regimes democráticos embora a sua matriz idiossincrática seja monolítica.
O ideário tecnocrático comunga com o positivismo da aversão às ideologias ainda que as adopte para impor pontos de vista na área do poder: há tecnocratas em todos os quadrantes. Produto de um tempo economicamente caracterizado pela produção em massa e progressivamente ligado às mais altas tecnologias, a tecnocracia é mais economicista e menos moralista do que o positivismo comteano defensor das virtudes altruísticas, do amor pela humanidade e da paz.
Na oposição às ideologias o tecnocrata julga-se a-ideológico, mas a existência de homens sem valores é uma impossibilidade ontológica e decorre da observação que a tecnocracia é uma filosofia que determina um corpo normativo e uma praxiologia necessariamente assentes numa escala de valores. A sua neutralidade é uma aparência que se confunde com a apropriação da ciência como fonte das suas convicções sociais e da sua acção sobre o mundo. Mas a própria eleição da tecnociência como intérprete do ser e do dever ser sociais é uma escolha entre modos de conhecimento possíveis e a sua invocação introduz-se numa visão pragmatista das coisas ligada ao culto da razão instrumental que secundariza os valores humanísticos e hipervaloriza a economia na definição das metas políticas.
Valter Guerreiro, 2008
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