sexta-feira, 6 de julho de 2007

Lembrando António Variações

As palavras soltam-se na música inconfundível para exceder um tempo. São palavras simples, doridas e provocatórias que usam harmonias muito pessoais para escoar inquietações que se atam às nossas. Despidas de violência, envolvidas numa específica respiração popular as imagens vestem-se de estéticas sonoras originais para pedir meças ao convencional sem afrouxar na qualidade. A voz que traz as cantigas sugere uma irreverência humilde e lança-se nas alturas para ganhar uma estranha beleza, fortemente identitária.

Os conflitos, as emoções, os desejos, os medos que o artista convoca são dele mas a substância de que são feitos e a inspiração que os processa transpersonalizam-nos com uma singular genialidade: perturbam, agitam, agradam e desafiam a sociedade transversalmente. É uma arte que interessa o homem comum e o erudito, é uma arte que é portuguesa sem prescindir da universalidade, é uma arte que politiza sem reivindicar um padrão ideológico. Porque é autêntica, porque é inteligente, porque descola do conhecido.

Sinal de um destino votado à glorificação póstuma, dramatização tecida pelo acaso ou mera decorrência de um traço transgressivo, o cantor foi pioneiro de uma doença trágica que o arrancou prematuramente ao nosso convívio. A morte precoce é uma conhecida condição para a construção dos mitos e, no caso do cantor, a maleita que o vitimou recobre-se de um duplo simbolismo: permanecendo um sinal dos tempos, vinca tragicamente a actualidade dos acasos e descasos da sua curta passagem pelo mundo; dando uma involuntária coerência à sua originalidade na morte e na vida, adensa mistérios e aguça a curiosidade pela sua obra.

Ícone da excentricidade, o artista deixou um legado polémico e suficientemente rico para ser explorado de vários ângulos em benefício da arte de fazer canções, da arte de as vocalizar e da arte de as encenar.

Por si só, esta herança original justificaria uma serena homenagem ao seu contributo versátil para o domínio das cantigas, mas não é tudo. Há um homem controverso, autêntico e inquietante por detrás dos sons em redemoinho e das frases esculpidas nos enlaces da vida comum com os exercícios nas margens: é uma figura humana cruzada pelo destemor da alma, pela indumentária bizarra e pela tragédia pessoal.

De traça plebeia e em estilo popular, a memória que guardo de Variações é mais um labéu acusatório da sociedade «normalizada» e depressiva que cava cada vez mais fundo no nosso quotidiano.

Foi mais ou menos isto que escrevi para definir o espírito de um musical que está em fase final de negociação. Porque as suas cantigas são gritos de alma que me tocam, porque são criaturas de uma qualidade artística singular e porque encarnam dilemas da maior actualidade com a plasticidade inclusiva de todos quantos desdenham o deserto de alma tecnocrático, resolvi aproveitar a sua memória para inaugurar este blogue.
Valter Guerreiro, 2008

3 comentários:

Alfredo Dinis disse...

Um dia este blog será uma referência na blogosfera!
Força Valter.

Alfredo Dinis disse...

Estamos, ansiosamente, a aguardar pelas ressonâncias de um cérebro que nos habituou a ideias lógicas mas caracterizadas por um indisfarsável humanismo e talhadas com a dor legítima - o que só lhes dá profundidade e uma faceta poética - de quem sente e pressente a mediocridade dos cegos de espírito.
Apetece-me citar Descartes:
"penso, logo existo"
Pense e mostre o que pensa.
Os pensamentos são sementes de mudança!
Um forte abraço
Um amigo

TheXrek disse...

OUTROS SERÃO LEMBRADOS E O ZÉ AFONSO AQUI ESTARÁ UM DIA PARA NOS LEMBRARMOS DO GÉNIO MAIS NOBRE E DESPOJADO QUE CONHECI.