O conformismo é o produto final de um processo de cedências no decurso do qual as opiniões pessoais e as capacidades criadoras abdicaram de se exprimir ou, mais gravemente, começaram a murchar na fonte. A cidade empalidece e fica mais desguarnecida.
Neste ponto, o homem dilui-se no não-ser e resta-lhe a lembrança de um sonho de si próprio que se apaga na impotência cívica e na solidão de todos os desencontros. Tecnicamente falando, a criatura aliena-se: perdendo-se de si, perde-se do mundo e transforma-se numa plasticina formatável pelos poderes sem compaixão.
A democracia identificava-se com a irreverência cívica e assumia a gestão constitucionalizada dos conflitos como a substância do exercício de uma liberdade que tinha como limites a sua própria defesa. A liberdade era tudo, porque a razão não vive sem ela e o mundo que a recusasse era inimigo da inteligência condenando-se ao obscurantismo que dá alimento à servidão.
O Homem da cidadela democrática seria livre de explodir na palavra, de se apresentar nas ideias e de as fazer intervir na gestão da vida colectiva: de que serviria a liberdade se o seu testemunho agonizasse no vazio? De que serviria a liberdade se o seu testemunho ocorresse nas margens? De que serviria a liberdade se o seu testemunho falecesse no silêncio? De que serviria a liberdade se o seu testemunho fosse hipocritamente punido? De que serviria a liberdade se não fosse liberdade?
A liberdade era a safira do futuro, a amante dos heróis, a inspiração dos poetas, a central nuclear das Luzes e, como tantos outros, Voltaire aceitava morrer pela palavra solta ainda que dela viessem maus ventos para o seu destino.
Liberta da falsidade arrogante dos dogmas, redimida da ignorância primária das superstições e resgatada das algemas da censura a palavra retirava a fantasia da clausura, dava oxigénio à inteligência, couraçava a confiança e punha os sentimentos em circulação na festa dos valores e na fidelidade aos factos.
Cada um escolheria o seu bom, o seu belo e o seu certo no versátil baú da vida. Haveria um filão de leite e de mel amigo de todas as sensibilidades e de todos os gostos que recusassem a violência sobre o outro: a violência física, a violência psicológica, a violência económica, a violência cultural e a violência do esquecimento.
Ciência à parte, cada um era uma subjectividade pronta a cumpliciar-se selectivamente com outras subjectividades em particulares visões do mundo e a democracia garantia que cada palavra individual era igual a cada palavra individual na formação das maiorias alternantes no leme do poder.
Sob o manto protector e exaltante das liberdades formais, sob a força telúrica e racional do mercado e sob a intervenção equilibrante e humanizadora do Estado as luzes do progresso misturar-se-iam com o calor dos afectos num mundo razoavelmente bondoso e numa atmosfera aceitavelmente meritocrática.
Este era o menú de luz da «liberdade, da igualdade e da fraternidade» com umas pitadas mais ou menos apimentadas de companheirismo do Estado. Este era o caminho radioso do ocidente que se opunha às sombras sinistras dos «goulacs».
No comando estariam os mais aptos, nas ciências os mais inteligentes, na riqueza os mais empreendedores: mas ninguém seria excluído da cidade, ninguém deixaria de ser bem cuidado da saúde e ninguém deixaria de se sentar a uma mesa bastante!
Alguns dos abris de Abril tomaram esta carta de intenções nas suas mãos, levaram-na ao regaço onírico do socialismo, regaram-na com a loucura de cavalos à solta, deram-lhe espaços ecuménicos, fizeram dela a gazua da liberdade de povos que pensaram justos e tomaram-na como mãe na solidária caminhada pelas veredas do futuro.
Sabem onde está esta carta? Têm-na visto por aí? Conformaram-se com o seu exílio?
Eu, não!
Valter Guerreiro, 2008
3 comentários:
Leio estas palavras ricas, poderosas, determinadas, obstinadas, com gosto e com emoção.
Julgo ouvir mesmo a voz do autor, libertando o seu intenso raciocínio, em busca da razão. Perante a vida, perante o mundo, perante os desafios, perante as batalhas, perante as glórias ou mesmo em face dos enganos, teremos porventura em comum o facto de não nos sentirmos obrigados a colocar a tenebrosa mordaça do conformismo.
O punho fica erguido contra a injustiça, contra a prepotência, contra a prolífera corrupção, contra a medíocre mesquinhez, contra a inveja, contra a falta de reconhecimento do mérito, contra a falta de ética!
Temos o dever de participar na construção de uma sociedade melhor, de acrescentar valor, de participar e não deixar que seja apenas meia dúzia de "ratazanas" a decidir por nós!
Para isso, precisamos de fazer aquilo que não conseguimos empreender até hoje: enfrentar a mãe de todas as batalhas...a da educação!!!
A compensação pelo inconformismo e pela verdade incómoda, num contexto de (infelizmente) previsíveis penalizações hipócritas, é frequentemente solitária, invisível e íntima, materializada sob a forma de "consciência tranquila"...mas, apesar de tudo, continuo a achar que "a persistência é progenitora do sucesso!"
EIS O ESPÍRITO DESTE BLOGUE: EM BUSCA DA UTOPIA POSSÍVEL CAMINHARÁ SEM ALIJAR A MEMÓRIA E SEM FAZER DE CONTA QUE DOMINA OS SEGREDOS QUE A NATUREZA HUMANA AINDA OCULTA.
CONTRA OS RÓTULOS POLÍTICOS QUE TRAIEM TODOS OS DIAS OS SEUS LEGADOS SEMINAIS, CONTRA A ABULIA TECNOCRÁTICA, CONTRA A CUPIDEZ ARGENTÁRIA, CONTRA O DARWINISMO NEO-LIBERAL, CONTRA O NEPOTISMO E O PARTIDOCRATISMO INFAMANTES QUE DERROTAM A QUALIDADE E MERGULHARAM O PAIS NA MEDIOCRIDADE E NO OPORTUNISMO MARCHARÁ, MARCHARÁ: SEM ÓDIOS, SEM LINGUAJAR PANFLETÁRIO, SEM DEMAGOGIA, SEM JACTÂNCIA E COM O PEITO ABERTO A TODAS AS CRÍTICAS. PODE SER QUE NO FIM, CAMINHANDO, CAMINHANDO, CHEGUEMOS A UM MUNDO MELHOR, NEM QUE SEJA UM BOCADINHO!
"...Podemos ainda ser poucos e fracos. Mas as tempestades que aí vêm vão-nos obrigar a ser muitos. O partido que dizem que já passou de moda - não o partido-empresa, não o partido-administração, não o partido-negócio, mas o partido dos revolucionários, esse há-de voltar. Porque é preciso acabar com o pesadelo e começarmos a viver como seres humanos".
Foi com estas palavras que Francisco Martins Rodrigues encerrou a sua intervenção na Festa da Política Operária a 19 de Janeiro de 2008.
E o Chico tem razão.
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