terça-feira, 17 de junho de 2008

A Utopia Planetária

A «filosofia positiva» imaginou que o processo conducente à cidade comteana se desenrolasse à escala planetária sustentado num determinismo que a «lei dos três estados» reflectia. No «fim da história» comteano, o positivismo substitui o mosaico político e a variedade social permitida pelas culturas pré-científicas.
Nos sistemas industriais de mercado os governos serão ocupados pelos peritos nos saberes positivos em coerência com uma cultura integralmente científica. Esta mundialização do positivismo coincide na essência com as aspirações tecnocráticas
Palco de modelos sociais variados em trânsito para um «fim de história» sabiocrático, a evolução do espírito conspiraria a favor da razão instrumental destinada a conter a saga humana nos limites das fronteiras impostas pela ciência. A história «contada» pela filosofia positiva parte de colectivos hegemonizados por ficções que se vão sofisticando sem saírem de quadros mentais adaptados à cultura do subjectivo, do mistério, das causas últimas, das essências e dos absolutos. O excepcional imaginado pelos espíritos imbuídos de convicções religiosas e metafísicas cederá na fase positiva ao ordinário empiricamente explicado no âmbito da cultura científica. As veleidades românticas e os arrobos passionais característicos das culturas pré-positivistas deixarão o campo da psique para nele se instalarem propósitos e afectos realistas extraídos da racionalidade positivista.
Os imaginários pessoais e colectivos educados para a irreverência e para os voos sem limites não têm lugar na cidade positivista. Ao contrário, a racionalidade comteana tem um pendor fatalista que se resolve numa atitude conservadora e pessimista como se vê nesta prosa: ”O positivismo tende poderosamente, pela sua natureza, a consolidar a ordem pública, pelo desenvolvimento de uma sábia resignação, isto é, uma disposição permanente a suportar com constância e sem nenhuma esperança de mudança, os males inevitáveis que regem todos os fenómenos naturais que se dá através do profundo sentimento dessas leis invariáveis. A filosofia positiva, que cria essa disposição, aplica-se a todos os campos, inclusive ao campo dos males políticos”. É difícil imaginar um mundo mais resignacionista!
Destinada à hegemonia positivista, a aventura do homem termina num modelo social planetário e uniforme correspondente ao carácter universal do paradigma da ciência clássica. As teses comteanas sustentam o primado da razão instrumental que corresponde à dominância da tecnociência vista como o trunfo da modernidade para cumprir o destino humano em todas as esferas, incluindo a gestão da coisa pública.
A desvalorização do mérito cognoscente e social das variantes teológicas e especulativas naturalmente produtoras da heterogeneidade sócio-cultural e a admitida vocação da ciência para ocupar a vacatura intelectual e espiritual consequente à eliminação dos modos de conhecimento pré-científicos são as razões de fundo da marcha histórica para a monocromia social da modernidade: igual e válida em toda a parte, a ciência mundializaria o regime capitalista industrial moldado em bases positivistas.
Cada forma social seria construída a partir das componentes de um padrão intelectual hegemónico gerador de estruturas e de funcionalidades adaptadas às fórmulas de pensamento características do padrão: nas sociedades formatadas segundo os princípios positivistas o poder político invocará o padrão científico.
Esboçado um princípio geral de coerência tipológica entre pensamento dominante, estrutura social e poder, o positivismo estabelece o perfil de governo necessário ao monopólio do saber científico nas sociedades industrializadas. Nesta lógica, todos os sábios contribuirão superiormente para a realização das tarefas colectivas, mas serão os sociólogos os eleitos para a acção governativa porque dispõem dos saberes necessários à definição das linhas estratégicas e à condução dos negócios públicos. Os altos dignitários do poder, elite entre as elites intelectuais, são obviamente os sociólogos: uma «intelligentzia» científica e técnica que investiga os domínios sincrónicos e diacrónicos do social. Nas outras matérias, os especialistas ditarão as suas leis no respeito pelos valores e estratégias definidas pelos sábios generalistas no âmbito da execução das políticas positivas.
A crítica positivista da metafísica encerra a lógica vertebral dos sistemas de pensamento tecnocrático e esclarece a sua natureza monolítica: a cidade comteana é uma república laica de sábios erguida sobre a razão instrumental. Hábeis no manuseamento de saberes e técnicas fundamentais à gestão do processo social, os cientistas da coisa social usarão a razão em política como os seus colegas a usam nas matérias da sua especialidade. A república comteana é um rochedo monolítico encaixado numa cultura pragmática superiormente dirigida por sábios sem oposições partidárias e parlamentares: é um «fim da história» politicamente liberto da sacralização do poder característica dos regimes monárquicos e das falsificações metafísicas dos regimes parlamentares de base eleitoral.
Eleições e parlamento fazem sentido nos ambientes sociais formatados pela subjectividade política, cívica, moral e religiosa mas perderão qualquer significado nas culturas positivistas onde os políticos-sábios construirão o «progresso na ordem» sob orientações sociológicos tão indiscutíveis quanto os princípios que orientam o engenheiro físico na produção de uma máquina. Ao governo dos sábios competiria modelar a sociedade de acordo com os cânones do positivismo no âmbito de uma mudança nas instituições precedida de uma reforma intelectual sintónica com o reconhecimento colectivo do valor insuperável da ciência como base do conhecimento, da educação e da acção.
Guiada pelo generalismo sintético dos técnicos da coisa social, baseada no trabalho de especialistas, polarizada na actividade dos industriais, alimentada por uma cultura do objectivo, o modelo comteano é um bunker sem respiradouros para outras sensibilidades intelectuais que não decorram da investigação positiva dos factos.
No tipo-ideal da cidade comteana incrustam as tecnocracias, que emergem como «positivismos mitigados» favorecidos pela perda de espaço das subjectividades ideológicas nas sociedades dominadas pela soberania da máquina. No entanto, apesar das vantagens combinadas que o tecnologismo, o consumismo e o economicismo oferecem à tecnocracia, a persistência dos discursos ideológicos no combate político e os nichos de resistência social à progressiva falência dos valores humanistas impede a filosofia tecnocrática de se exprimir completamente, obrigando-a a moderar os seus ideais nos limites da «realpolitik» e a agir dentro das formações políticas com base em discursos técnicos formalmente conexionados com os valores invocados por cada partido. Nestes pressupostos, o tecnocrata exprime-se pluralisticamente nos regimes democráticos embora a sua matriz idiossincrática seja monolítica.
O ideário tecnocrático comunga com o positivismo da aversão às ideologias ainda que as adopte para impor pontos de vista na área do poder: há tecnocratas em todos os quadrantes. Produto de um tempo economicamente caracterizado pela produção em massa e progressivamente ligado às mais altas tecnologias, a tecnocracia é mais economicista e menos moralista do que o positivismo comteano defensor das virtudes altruísticas, do amor pela humanidade e da paz.
Na oposição às ideologias o tecnocrata julga-se a-ideológico, mas a existência de homens sem valores é uma impossibilidade ontológica e decorre da observação que a tecnocracia é uma filosofia que determina um corpo normativo e uma praxiologia necessariamente assentes numa escala de valores. A sua neutralidade é uma aparência que se confunde com a apropriação da ciência como fonte das suas convicções sociais e da sua acção sobre o mundo. Mas a própria eleição da tecnociência como intérprete do ser e do dever ser sociais é uma escolha entre modos de conhecimento possíveis e a sua invocação introduz-se numa visão pragmatista das coisas ligada ao culto da razão instrumental que secundariza os valores humanísticos e hipervaloriza a economia na definição das metas políticas.

Valter Guerreiro, 2008

segunda-feira, 16 de junho de 2008

A Tecnocracia Real

A tecnocracia real em acção no concreto é uma purificação do ideário tecnocrático que lhe revela os elementos substantivos e compõe o «tipo ideal». É um retrato abstracto que figura o tecnocrata puro animado por uma espécie de panteísmo científico que põe o saber positivo no lugar do divino spinozista. É uma descritiva de traça weberiana que permite comparar a tecnocracia desejada com a tecnocracia realizada.
É a tecnocracia plenificada dos escritos comteanos em cotejo com a tecnocracia constrangida das sociedades: da herança comteana a tecnocracia recebeu o núcleo duro, que é monolítico e cientificista mas não o pode praticar nas culturas pluralistas de que é filha.
Em todo o caso, a tecnocracia vai-se afirmando no ocaso das ideologias e na intrusão cada vez mais intensa dos símbolos de uma cultura materialista e empirista.
A tecnocracia resgatou a substância da utopia positivista e adaptou-a às circunstâncias móveis das sociedades do século XX sem lograr aproximar-se da hegemonia social, cultural e política prevista do ideal comteano. Na versão capitalista a tecnocracia tem que conviver com o pluralismo e na versão socialista teve que sujeitar-se aos ditames do partido comunista formalmente entrincheirado no marxismo-leninismo.
Neste sentido, o discurso do positivismo e das suas expressões gerencialistas encerram os mitos fundadores do imaginário tecnocrático que na linguagem sainsimoniana se projectam na substituição do «governo dos homens» pela «administração das coisas» e no pensamento comteano se polarizam num «governo de sociólogos».
Dentro da matriz positivista o contributo central para a pertence às reflexões comteanas que seguiram Condorcet na visão
que emerge nos seus escritos como uma necessidade histórica destinada a eliminar a metafísica dominante e a substitui-la definitivamente na construção do modelo político das sociedades industriais e na definição das responsabilidades de gestão na economia, na ciência e na religião.
onde os sábios da sociologia serão os estrategos e os coodenadores da acção governativa que buscará alcançar os objectivos que a novel ciência das sociedades traçou. O contributo central das reflexões comteanas para a construção do ideário tecnocrático foi antecedido pelas intuições do seu mestre a quem se devem os primeiros alicerces do discurso fundador construídos em torno da ideia
Com efeito, o discurso fundacional da tecnocracia iniciou-se no pensamento de S.Simon e foi o discípulo, A. Comte, quem teorizou sistematicamente a ideia de uma política baseada na ciência com relevo especial para os saberes sociológicos que teriam competência para definir e coordenar os objectivos das sociedades industriais. O peso de Platão na construção do ideário tecnocrático é incomparavelmente menor e não vai além do facto do «governo de sábios» ter sido desenhado como um centro monolítico de decisão encarregado de aplicar os princípios coerentes com a sua filosofia das ideias. A anexação do espiritualismo platónico ao património genético da tecnocracia tem a aparência de um paradoxo e, por esta via, pode sugerir a existência de concordâncias significativas com o positivismo de Comte que constitui a referência teórica central dos que concebem o poder ideal como um exclusivo de tecnocientistas mas nada é mais distante da ontologia e da epistemologia platónicas do que a redução popsitivista do ser a uma estrutura de regularidades fenoménicas empiracamente observáveis.

Valter Guerreiro, 2008

O Positivismo e a Grande Revolução

Franceses, os apóstolos políticos da ciência elaboraram teses sobre o sentido da história tomando em conta a Grande Revolução uma vez que os acontecimentos de 89 e as suas sequências na sociedade francesa foram interpretados como o prelúdio da era positiva: os filósofos das Luzes são os grandes actores da metafísica e semearam as ideias revolucionárias em nome de uma Razão antagonista das culturas ancoradas na fé.
Pode dizer-se que a Revolução Francesa é interpretada pelo positivismo como a manifestação dramática da lei de bronze da caminhada do espírito no decurso da qual os enciclopedistas desarmaram os alicerces religiosos da cultura aristocrática sem perceberem que estavam a abrir as portas da história à implantação da cultura humana derradeira formatada pela razão empírica que viria quando a poeira revolucionária assentasse.
No discurso comteano, a tradução concreta da relação entre a evolução do espírito e as sociedades globais é ilustrada no facto da eminência metafísica haver posto os legistas no poder e ter colocado os filósofos no topo da intelectualidade, subtraindo força política à aristocracia e influência moral ao clero. A sociedade francesa passava a ser o palco da presença contraditória das forças aristocráticas, clericais e militares em perda de hegemonia diante dos poderes emergentes da burguesia e dos metafísicos cujo racionalismo pôde acolher sem unanimidade a ideia de Deus mas foi naturalmente anti-místico. O domínio burguês teria por sua vez os dias contados e Comte daria uma ajuda.
Como em qualquer outro determinismo sociológico, no sistema positivista os actores são guiados por leis necessárias cuja existência ignoram ou tendem a desconhecer. Nestas circunstâncias, a liberdade dos homens é puramente imaginária e o comteanismo viu nos intelectuais pré-positivistas o que o marxismo viu na burguesia: coveiros de si próprios. Iludidos por uma fé ilimitada no poder da razão, os metafísicos reinterpretaram os fenómenos humanos à luz de um racionalismo optimista e acabaram por preparar, involuntariamente, a teorização positiva do social que os negaria como elite intelectual e liquidaria o modelo social que continuavam a inspirar.
No entendimento do positivismo, os agentes sociais são títeres da história do Espírito que marcha a ritmos conformes aos tempos e aos povos, numa viagem contínua e sem retorno do simples para o complexo e das ilusões fetichistico-religiosas para as certezas da ciência. Neste circuito plano do espírito iniciado no começo dos tempos, coube aos homens da Enciclopédia o encargo de demolir os deuses e abrir as portas ao cientismo sem darem conta de que o racionalismo era um momento transitório do caminho da razão que culminaria num modelo sócio-político bastante diferente da sociedade legista saída da revolução. O POSITIVISMO E A GRANDE REVOLUÇÃO
Franceses, os apóstolos políticos da ciência elaboraram teses sobre o sentido da história tomando em conta a Grande Revolução uma vez que os acontecimentos de 89 e as suas sequências na sociedade francesa foram interpretados como o prelúdio da era positiva: os filósofos das Luzes são os grandes actores da metafísica e semearam as ideias revolucionárias em nome de uma Razão antagonista das culturas ancoradas na fé.
Pode dizer-se que a Revolução Francesa é interpretada pelo positivismo como a manifestação dramática da lei de bronze da caminhada do espírito no decurso da qual os enciclopedistas desarmaram os alicerces religiosos da cultura aristocrática sem perceberem que estavam a abrir as portas da história à implantação da cultura humana derradeira formatada pela razão empírica que viria quando a poeira revolucionária assentasse.
No discurso comteano, a tradução concreta da relação entre a evolução do espírito e as sociedades globais é ilustrada no facto da eminência metafísica haver posto os legistas no poder e ter colocado os filósofos no topo da intelectualidade, subtraindo força política à aristocracia e influência moral ao clero. A sociedade francesa passava a ser o palco da presença contraditória das forças aristocráticas, clericais e militares em perda de hegemonia diante dos poderes emergentes da burguesia e dos metafísicos cujo racionalismo pôde acolher sem unanimidade a ideia de Deus mas foi naturalmente anti-místico. O domínio burguês teria por sua vez os dias contados e Comte daria uma ajuda.
Como em qualquer outro determinismo sociológico, no sistema positivista os actores são guiados por leis necessárias cuja existência ignoram ou tendem a desconhecer. Nestas circunstâncias, a liberdade dos homens é puramente imaginária e o comteanismo viu nos intelectuais pré-positivistas o que o marxismo viu na burguesia: coveiros de si próprios. Iludidos por uma fé ilimitada no poder da razão, os metafísicos reinterpretaram os fenómenos humanos à luz de um racionalismo optimista e acabaram por preparar, involuntariamente, a teorização positiva do social que os negaria como elite intelectual e liquidaria o modelo social que continuavam a inspirar.
No entendimento do positivismo, os agentes sociais são títeres da história do Espírito que marcha a ritmos conformes aos tempos e aos povos, numa viagem contínua e sem retorno do simples para o complexo e das ilusões fetichistico-religiosas para as certezas da ciência. Neste circuito plano do espírito iniciado no começo dos tempos, coube aos homens da Enciclopédia o encargo de demolir os deuses e abrir as portas ao cientismo sem darem conta de que o racionalismo era um momento transitório do caminho da razão que culminaria num modelo sócio-político bastante diferente da sociedade legista saída da revolução.
Na prospectiva comteana a tríade de ouro do racionalismo revolucionário e bandeira universal das sociedades demo-liberais - «liberdade, igualdade e fraternidade - acabará por ser apeada pela consigna da sociedade positivista: «ordem e o progresso».
Esta visão das coisas sociais e políticas permitiu ao positismo ler a revolução francesa como uma decapitação dos valores, das práticas e das instituições associados à crença no sobrenatural que substanciava a cultura do Ancien Regime e oferecia a mística necessária à legitimação da monarquia. Nesta missão histórica os enciclopedistas difundiram abstracções que removeram os deuses da consciência colectiva mas que não contribuiram para instalar as capacidades necessásrias à descodificação e à organização do mundo capitalista.
Pelo contrário, o positivismo comteano atribui-lhe males sociais relevantes que se exprimem basicamente na desordem social e na degradação das instituições ligadas à natureza liberal das ideias revolucionárias fundadas numa metafísica cuja subjectividade tende a gerar pluralismos ideológicos nos quais os mesmos objectos são tratados de modos díspares e até antinómicos.
Substituindo os dogmas da fé, as verdades reveladas e as apostas no além por conceitos humanizados e pela fé na capacidade da razão especulativa, os filósofos transformaram a política num exercício de conceitos desrealizados e em conflito partidário permanente sem lograrem perceber que o sentido da históra exigiria a transformação positivista das instituições sociais em coerência com a hegemonia intelectual da ciência num ambiente político monocolor instaurado e gerido pelos saberes empírico-experimentais dominados por sábios governantes.

Na prospectiva comteana a tríade de ouro do racionalismo revolucionário e bandeira universal das sociedades demo-liberais - «liberdade, igualdade e fraternidade - acabará por ser apeada pela consigna da sociedade positivista: «ordem e o progresso».
Esta visão das coisas sociais e políticas permitiu ao positismo ler a revolução francesa como uma decapitação dos valores, das práticas e das instituições associados à crença no sobrenatural que substanciava a cultura do Ancien Regime e oferecia a mística necessária à legitimação da monarquia. Nesta missão histórica os enciclopedistas difundiram abstracções que removeram os deuses da consciência colectiva mas que não contribuiram para instalar as capacidades necessásrias à descodificação e à organização do mundo capitalista.
Pelo contrário, o positivismo comteano atribui-lhe males sociais relevantes que se exprimem basicamente na desordem social e na degradação das instituições ligadas à natureza liberal das ideias revolucionárias fundadas numa metafísica cuja subjectividade tende a gerar pluralismos ideológicos nos quais os mesmos objectos são tratados de modos díspares e até antinómicos.
Substituindo os dogmas da fé, as verdades reveladas e as apostas no além por conceitos humanizados e pela fé na capacidade da razão especulativa, os filósofos transformaram a política num exercício de conceitos desrealizados e em conflito partidário permanente sem lograrem perceber que o sentido da históra exigiria a transformação positivista das instituições sociais em coerência com a hegemonia intelectual da ciência num ambiente político monocolor instaurado e gerido pelos saberes empírico-experimentais dominados por sábios governantes.



Valter Guerreiro, 2008

A Ideologia Positivista

As ideias tecnocráticas emergem no século XX para disputarem as funções políticas tradicionalmente reservadas às ideologias e inscrevem-se numa lógica cientificista que o positivismo de oitocentos desenvolveu radicalmente no seio da sociedade francesa. Exaltando as prestações das ciências da natureza e procurando afeiçoar os seus métodos à análise da história, o positivismo reivindicou o monopólio do conhecimento em todas as áreas e julgou-se com legitimidade intelectual para definir o «ser» e o «dever ser» sociais.
Na escatologia comteana o positivismo contém a sugestão de um «governo de sociólogos» destinado a liderar até ao fim dos tempos e há quem vislumbre nesta fórmula ecos do «governo de sábios» platónico que também procurou colocar o «verdadeiro» conhecimento - a teoria das formas - ao leme da sociedade. De facto, definir e justificar um escol intelectual apto a desenvolver políticas desideologizadas foi um problema central na filosofia positiva e a ideia de um comando político monopolizado por elites científicas foi a solução lógica.
O positivismo oitocentista não se limitou a conhecer os factos sociais interrogando a história. Foi mais longe, e assumiu-se como ciência normativa: partiu do «ser» para o «dever ser». As normas colhidas do entendimento que deu aos factos serviram para determinar instituições, sentimentos, objectivos sociais, atitudes morais e modelos de governação política conformes à sociedade industrial.
Insinuando-se em fragmentos dispersos nas controvérsias epistemológicas e nos discursos sobre as problemáticas sociais, as ideias da filosofia positiva adquiriram explicitude e sistematicidade na obra de Comte sob a forma de um determinismo idealista que interpretou a evolução como uma necessidade e viu na época positivista o «fim da história».
Segundo o comteanismo, o espírito e a prática do positivismo ter-se-iam entrincheirado gradualmente nos diferentes campos do conhecimento sem que tal determinasse a subversão da hegemonia sucessiva dos modos teológico e metafísico de interpretar-modelar o mundo. Foi preciso que o método positivo estivesse habilitado a decifrar a natureza do social, a determinar as causas da sua evolução e a definir as fases sequenciais da maturação do espírito para que os fenómenos sociais ficassem na alçada da ciência como já ocorrera nas matérias físicas, biológicas e psicológicas.
Apesar de ter sido Comte o autor da teoria sistemática que fundamenta o positivismo não é ele o pioneiro do pensamento positista nem sequer o predecessor mais original da idiossincrasia tecnocrática cuja criação é imputada a Saint Simon que concebeu a ideia de uma pilotagem social reduzida à gestão técnica e a resumiu em figuras de estilo extremamente sugestivas da substância política da sociedade tecnicizada e da estrutura social correspondente: a substituição do «governo dos homens» pela «administração das coisas» foi a fórmula célebre que usou para afirmar o primado da técnica e da economia sobre a política nas sociedades industriais.
A leitura radical que o conde fazia do impacto da tecnociência na definição do tecido social é por vezes trazida numa linguagem condensada, impressionista e criativa que hoje legenda as incursões teóricas na tecnocracia. Quem, no circulo das ciências humanas, não leu e releu a parábola obrigatória contra a permanência das componentes do Ancien Regime na estrutura da sociedade francesa pós-revolucionária»? Parábola escrita com cruel simplicidade para afirmar a disfuncionalidade parasitária da aristocracia e do clero na sociedade industrial onde o primado da produção e o ocaso dos saberes reclamariam a passagem do poder para os «industriais», entendidos como a totalidade dos agentes da economia.
Para o mestre de Comte os industriais constituiam a classe decisiva para organizar, gerir e trabalhar nas sociedades centradas na produção de mercadorias e dominadas pelo valor teórico-prático da ciência, alargada à leitura do social.
Foi a ideia sainsimoniana da despolitização cientificista do mundo industrial que Comte absorveu, redefiniu e monumentalizou num quadro intelectual onde o empirismo e o historicismo espiritualista de Condorcet já tinha contribuído para definir as bases epistemológicas e filosóficas das concepções positivistas. Nestas condições, o comteanismo construiu uma narrativa histórica de traça enciclopédica baseada na evolução fásica do pensamento humano até à realização integral do espírito positivo e usou a «Lei dos Três Estados» e a «Classificação das Ciências» para combinar o percurso geral e especializado da Razão que a sua razão fechou na sociologia e os seus sentimentos prolongaram até à moral.
Na lógica do comteanismo, a sociologia desferia o último golpe na metafísica: desalojava-a do reduto social onde ainda mantinha competências para produzir ensinamentos de facto e definir normas de acção. A sociologia estaria em condições de remover as falsificações metafísicas sobre o «ser» e o «dever ser» sociais e de as trocar por proposições fundadas na aplicação da metodologia científica que serviriam de base à governação positivista após o período político dominado pelas ideias metafísicas e pela actividade legislativa.
A hipertrofia do campo de aplicação da ciència e a hipervalorização dos seus conteúdos significaram a menorização da teologia e da metafísica acusadas de representarem modos obsoletos de interpretar o real. A crítica positivista da metafísica desmultiplica-se no ataque às falsificações resultantes do seu subjectivismo especulativo e na oposição à sua megalónoma pretensão de fundir a verdade com a substância das coisas. Foi em conformidade com a noção da lógica evolutiva da inteligência que a sociologia nasceu no seio da filosofia positiva para apear de vez a ambição de aceder à «verdade» ontológica que procura atingir a essência do «ser» e mostrar que o conhecimento possível, genuíno e necessário se queda na superfície das coisas. O único saber viável reduzir-se-ia, no comteanismo, à apreensão dos fenómenos que emergem regularmente dentro de cadeias específicas de antecedentes-consequentes tal como haviam mostrado os empiristas encabeçados por David Hume.
Admitindo que todas as disciplinas passavam pela sua fase teológica, metafísica e positiva, o «pai da sociologia» entendeu que a esfera dos fenómenos da natureza e da mente já se havia tornado positiva faltando cumprir a ciência no discurso sobre o social. Foi esta a tarefa que o comteanismo realizou quando inventou a sociologia e, nesse instante, instaurou as condições intelectuais de passagem da fase metafísica à fase terminal da história humana: o estado positivo. Nas reflexões do positivismo, a sociologia era o elo em falta na cadeia científica e gerava dois efeitos indissociáveis:
1) A cobertura científica integral dos domínios possíveis do saber.
2) A conversão progressiva da humanidade ao monolitismo, ao laicismo e ao pacífismo sob os auspícios de princípios científicos necessariamente universias, dessobrenaturalizantes e eficazes.
Para trás, ficavam a busca do transcendente e os devaneios ontológicos reflectidos nas teologias e nas metafísicas que correspondiam a modelos monárquicos e parlamentares prestes a serem enterrados pelas projecções sociais totais da mentalidade positivista.
Expressa num governo de sábios, numa economia de mercado, numa igreja sem deuses, numa visão ecuménica das solidariedades e numa cultura de saberes modestos, rigorosos e eficazes, a utopia comteana antecipa e modela radicalmente a idiossincrasia e os projectos políticos da tecnocracia: o modelo ideal-típico da cidadela positivista é o sonho tecnocrático.
Contra as ficções produzidas pela fé e pela especulação abstracta, o positivismo ergueu o facho da verdade científica. Contra as estruturas sociais compatíveis com a teologia e a metafísica, o positivismo redesenhou a sociedade em bases científicas. Contra os figurinos políticos de fundamento hereditário ou de raiz metafísica, o positivismo proclamou o monolitismo dos saberes sociais fundados em metodologias com provas dadas na esfera da ciência.
Na obra comteana, as teses positivistas formulam-se de modo explícito, unitário e sistemático para fundamentar a transformação do conhecimento científico em poder político adequado às singularidades das sociedades industriais onde o governo positivista encerraria o ciclo das transformações fásicas da história. No estado positivo teríamos uma humanidade monolítica comandada por sábios avessos à dogmática da fé, à retórica metafísica e aos modelos políticos plurais.